TÍTULOS PUBLICADOS

NA COLECÇÃO AMPLA: 033. Tabernáculo, André Tomé; 032. Com a Língua nos Dentes, Miguel Filipe Mochila; 031. uma exigência de infinito, Luís Falcão; 030. carvão :: capim, Guilherme Gontijo Flores; 029. Tempo da impaciência, Miguel Filipe Mochila; 028. Bruma Luminosíssima, Luís Falcão; 027. Primeiro Direito, Vasco Gato; 026. Calendário, Daniel Francoy; 025. Mera Distância, Luís Amorim de Sousa; 024. Um pouco acima do lugar onde melhor se escuta o coração, Andreia C. Faria; 023. O Sangue das Flores, Rute Castro; 022. Turismo de guerra, Tiago Patrício; 021. Romance ou falência, Luís Pedroso; 020. 67, Rue Greneta, Isabel Nogueira; 019. Uma fonte no quintal, Eric Weinstein, Jeremy Schmall, Katherine Larson, Stephen Motika & Tracy K. Smith; 018. Não tenho olhar mas mamilos que endurecem quando alguém me olha, Zeferino Mota; 017. Doze Passos Atrás, Frederico Pedreira; 016. Supremo 16/70, Miguel-Manso; 015. GKJMA, João Silveira; 014. Na ordem do dia, João Vasco Coelho; 013. Miniatura, Simão Valente; 012. Quinteto, Catarina Barros, Tatiana Faia, Maria João Lopes Fernandes, Frederico Pedreira e Paulo Tavares, 011. Elegias de Cronos, Nuno Dempster; 010. Isso passa, João Miguel Henriques; 009. Lugano, Tatiana Faia, 008. Dever/Haver, João Silveira; 007. O comportamento das paisagens, Pedro Tiago; 006. Breve passagem pelo fogo, Frederico Pedreira; 005. o som a casa, Luís Felício; 004. Sob os teus pés a terra, Soledade Santos; 003. As junções, Hugo Milhanas Machado; 002. Em cidade estranha, Daniel Francoy; 001. Minimal Existencial, Paulo Tavares. NA COLECÇÃO ÍTACA: 003. Estradas Secundárias: doze poetas irlandeses, AAVV (tradução de Hugo Pinto Santos); 002. Édipo, Séneca (tradução de Ricardo Duarte); 001. Agamémnon, Ésquilo (tradução de José Pedro Moreira); REVISTA AGIO: 001. AAVV, Fevereiro de 2011.

02/11/14

Sobre «O Sangue das Flores»

Rute Castro: O Sangue das Flores
por Frederico Pedreira, em 31 de Outubro de 2014 
(texto lido na apresentação do livro) 


          Não me faz grande sentido falar de poesia como quem pergunta no restaurante, de cotovelos apoiados no balcão: o cozido hoje está bom? O livro da Rute tem a propriedade fundamental do que se quer na poesia: desacelerar o tempo, esse tempo balofo que precisa dos certificados de qualidade dos falsos mestres. E é um livro difícil, não propriamente pela linguagem a que dá uso, mas pelo tipo de uso que dá à linguagem. Como na poesia que interessa, a linguagem neste livro está de férias. E digo isto no melhor dos sentidos, que é o de afastar por definição a ideia de utilidade, a ideia de veicular uma mensagem no modo particular da poesia. O poema da Rute não é redondo, o focinho não encontra a cauda, e por isso os olhos do bicho andam desvairados, perdidos, e é esse o encanto d’O Sangue das Flores. Ouvimos uma conversa íntima da Rute consigo mesma, e essa conversa bifurca em dois sentidos: um é o da candura, daquela que vem das crianças que brincam sozinhas durante horas e só desistem quando são chamadas pela segunda vez para dentro de casa; o outro é o de uma tranquilidade, de roupagens quase transparentes, face à violência de que o mundo é capaz em doses diárias. Ouvimos esta conversa íntima como se atrás de uma porta fechada, e compadecemo-nos. É como vermos uma pessoa a jantar sozinha num restaurante. Vermos o que faz enquanto o prato não chega, o que faz com as mãos, a coragem que mostra em enxotar o rumor do mundo. Também já disse isto noutro sítio, e, ao falar deste livro, o sentido do que disse encontra uma morada digna: o bom poema é aquele que nos deixa ouvir uma conversa que o poeta tem consigo mesmo. E esta é uma conversa de surdos, claro. Em contrapartida, quem escreve sentindo-se observado nunca se irá despir.


A capa deste livro é alegórica: metade mulher, metade voo. Quem diz voo diz sonho, e um sonho só se constrói sobre um pano-de-fundo real. Isto é trivial. O que importa no livro da Rute é uma vontade, uma vontade de contornos muito delicados e ponderados, de reabilitar o mundo através da beleza possível que sobrevive nas coisas, nos lugares e seus habitantes. Quando falo em lugares, falo sobretudo nos lugares da memória. É sabido: a poesia é um corpo vivo que reinventa a sua própria memória. E então é aqui que a voz da Rute entra com uma frescura diferente: O Sangue das Flores apresenta-se-me como a ventilação do desastre. Aqui faço uma pequeníssima e talvez escusada ilustração: “[…] aqui estamos neste desabar/de pele, neste romper alegorias, nos ternos incêndios da manhã, // é meia-noite, talvez hoje anjos recaiam sobre a minha praga, esta mão/que ainda balouça o fim do mundo.[p.29]” Quando li este livro, lembrei-me imediatamente de um exercício. Imagine-se entrarmos numa casa abandonada, de madeiras podres e nuvens de pó, e, sem tocar em nada do que é memória nessa casa, pormo-nos a decorá-la com flores, sedas, coisas de uma delicadeza superlativa. Não se mexe na disposição das coisas, no rumo selvagem da memória. É proibido. Não podemos sequer enxotá-la. Quando li O Sangue das Flores percebi que a Rute trabalhou sobre este tipo de reconhecimento das coisas, e apercebi-me de que ela trata dos escombros como se tenta sossegar a dor de uma asa partida. É bem mais difícil fazer isto do que deitar tudo abaixo e construir de novo. A suspensão do desastre envolve um exercício de coragem, no olhar que segue inquisitivo, a medo, à procura de um reconhecimento do eu nas coisas antigas. Escreve a Rute: “talvez sentir melhor seja um pouco mais de coragem, / verificar por baixo as secreções do que ainda deita, sinal de que mexe, / mesmo azedo, quase passado.” [p. 50] Plantar coisas num terreno minado é possível, claro, e o factor de regeneração da natureza, de costas voltadas para o homem, está presente neste livro. Leia-se assim os versos: “e a terra redescobre, talvez, todos os dias o que se quer encontrar/e diz-nos como não ouvimos.” [p. 43] A memória cicatriza, isto é também trivial. O que já não é trivial é a diferença operada na mente de quem interiorizou um certo grau de violência e usou essa violência para voltar a estranhar o mundo. Digo “estranhar” num sentido absolutamente positivo e saudável, como a personagem Miranda, em The Tempest, de Shakespeare, estranha o mundo de olhos a brilhar, ao ver o seu “admirável mundo novo”. Sobretudo porque é novo para si. O que a Rute consegue através da força de muitos dos seus versos é uma regeneração da sua paisagem interior, e o soro dessa beleza reclamada é encontrado num exercício de respiração boca a boca com a morte. Ou pelo menos com as várias perspectivas sobre a morte. Um encontro muito sério da voz da Rute consigo mesma: é isso que me atrai mais neste livro. E é isso que me parece jogar a seu favor, porque lhe transforma a percepção do mundo. E a nós, aos leitores, dá-nos que fazer com a espécie de candura em suspensão contínua dos seus versos. O que é feio é para se ver, ou melhor, reconhecer. E este tipo de reconhecimento, que envolve uma participação na forma como o mundo se nos apresenta, em vez de uma mera contemplação, exige também responsabilidade, e com ela um certo grau de decoro. Diz a Rute, ao fechar o livro: “tens a serpente no colo e acarinhas o veneno, / as feridas secam e os rostos também / e é feio apontar.” [p. 51]
É, ou pelo menos para mim sempre foi, extremamente irritante quando dizem: “levas-te demasiado a sério”. O que me apetece responder é: “mas como é que é possível não me levar demasiado a sério?” E onde é que há espaço para a palavra “demasiado” neste contexto? A poesia é uma conversa de surdos, ou de malucos, é à escolha do freguês. O leitor entra nesta conversa a meio. Ou fica a ouvir, de costas, de preferência, como se faz nos cafés, ou vai-se embora, entretido com os seus passinhos. Eu levo-me a sério, não demasiado porque o demasiado não tem aqui lugar, e acho que a Rute também se leva a sério. E só com esta atitude responsável perante a escrita é que se pode dizer: eu escrevo. Não é a poesia-laracha que me interessa. Não é a poesia com a sebenta da faculdade ao lado que me interessa. Muito menos a poesia de cuspidores de fogo do Chiado ou a poesia de versinho a condizer. Cada pessoa tem um embate sério, seríssimo, prometido consigo mesma. Do rebentar desse embate, dessas feridas, vem o sangue, e também há flores, mas no final, estendidos nessa espécie de ringue ontológico, não podemos ter só o sangue ou só as flores à nossa volta. Coragem, coragem e mais coragem. É o que se exige. E que todos os que escrevem se levem estupidamente a sério. Que não se invente quando não se encontra o pulso, todos temos as nossas pequenas mortes; que não se vampirizem mortos quando andamos de nariz entupido e não cheiramos o nosso próprio sangue. Ele há de cheirar. E o trabalho da Rute é lento, paciente, e chegou, e não vampiriza, não repete, até porque não se pode repetir a respiração particular de uma vida.