«estás
debaixo de terra
e
dizem-te que é de noite.
não
há luz.
não
há sol.
é
de noite, filha,
dizem-to
como mo disseram a mim em criança.
esta
noite, este túnel,
sempre
me assombrou, Mariana
(a
tua mãe disse-o agora, o teu nome).
é
de noite, Mariana
e
por isso não há sol,
não
há luz,
só
cimento e carris
e
guinchos vindos do escuro.
acham-te
curiosa por não saberes porque é noite.
eles
também não sabem.
adeus
é para os mortos, continuam,
sorrindo
sem saber o que foi feiro do céu.
é
tudo mentira.
não
é de noite.
o
sol não morre assim.
e
um adeus muitas vezes a quem nos sobrevive.»
não
é muito comum encontrar textos com a força expressiva deste poema. a omissão do
contexto narrativo, a sobreposição de registos, uma quase contraditória secura
dos enunciados, conjugam-se para produzir uma sensação de perturbação que o
final do texto não dilui. é uma poesia sensível a deste livro. sensível
enquanto não rejeita o lirismo de que este poema é exemplo, e sensível porque
assenta sobre um trabalho atento e cuidado da língua. é ainda sensível porque
quase todos os textos implicam a presença física de um olhar que vê e de um
corpo que sente. fome ou frio, o escuro ou o som de um uivo. nos melhores
textos, encontramos aqui uma força expressiva que é raro encontrar na poesia
recente. [continuar a ler]
H. G. Cancela, no blogue Contra Mundum
sobre Dever/Haver,
de João Silveira, Edições Artefacto