Rute Castro: O Sangue das Flores
por Frederico Pedreira, em 31 de Outubro de 2014
(texto lido na apresentação do livro)
Não me faz grande sentido falar de
poesia como quem pergunta no restaurante, de cotovelos apoiados no balcão: o
cozido hoje está bom? O livro da Rute tem a propriedade fundamental do que se
quer na poesia: desacelerar o tempo, esse tempo balofo que precisa dos certificados
de qualidade dos falsos mestres. E é um livro difícil, não propriamente pela
linguagem a que dá uso, mas pelo tipo de uso que dá à linguagem. Como na poesia
que interessa, a linguagem neste livro está de férias. E digo isto no melhor
dos sentidos, que é o de afastar por definição a ideia de utilidade, a ideia de
veicular uma mensagem no modo particular da poesia. O poema da Rute não é
redondo, o focinho não encontra a cauda, e por isso os olhos do bicho andam
desvairados, perdidos, e é esse o encanto d’O
Sangue das Flores. Ouvimos uma conversa íntima da Rute consigo mesma, e
essa conversa bifurca em dois sentidos: um é o da candura, daquela que vem das
crianças que brincam sozinhas durante horas e só desistem quando são chamadas pela
segunda vez para dentro de casa; o outro é o de uma tranquilidade, de roupagens
quase transparentes, face à violência de que o mundo é capaz em doses diárias.
Ouvimos esta conversa íntima como se atrás de uma porta fechada, e compadecemo-nos.
É como vermos uma pessoa a jantar sozinha num restaurante. Vermos o que faz
enquanto o prato não chega, o que faz com as mãos, a coragem que mostra em
enxotar o rumor do mundo. Também já disse isto noutro sítio, e, ao falar deste
livro, o sentido do que disse encontra uma morada digna: o bom poema é aquele
que nos deixa ouvir uma conversa que o poeta tem consigo mesmo. E esta é uma
conversa de surdos, claro. Em contrapartida, quem escreve sentindo-se observado
nunca se irá despir.
A capa deste livro é alegórica:
metade mulher, metade voo. Quem diz voo diz sonho, e um sonho só se constrói
sobre um pano-de-fundo real. Isto é trivial. O que importa no livro da Rute é uma
vontade, uma vontade de contornos muito delicados e ponderados, de reabilitar o
mundo através da beleza possível que sobrevive nas coisas, nos lugares e seus
habitantes. Quando falo em lugares, falo sobretudo nos lugares da memória. É
sabido: a poesia é um corpo vivo que reinventa a sua própria memória. E então é
aqui que a voz da Rute entra com uma frescura diferente: O Sangue das Flores apresenta-se-me como a ventilação do desastre. Aqui
faço uma pequeníssima e talvez escusada ilustração: “[…] aqui estamos neste
desabar/de pele, neste romper alegorias, nos ternos incêndios da manhã, // é
meia-noite, talvez hoje anjos recaiam sobre a minha praga, esta mão/que ainda
balouça o fim do mundo.[p.29]” Quando li este livro, lembrei-me imediatamente
de um exercício. Imagine-se entrarmos numa casa abandonada, de madeiras podres
e nuvens de pó, e, sem tocar em nada do que é memória nessa casa, pormo-nos a
decorá-la com flores, sedas, coisas de uma delicadeza superlativa. Não se mexe
na disposição das coisas, no rumo selvagem da memória. É proibido. Não podemos
sequer enxotá-la. Quando li O Sangue das
Flores percebi que a Rute trabalhou sobre este tipo de reconhecimento das
coisas, e apercebi-me de que ela trata dos escombros como se tenta sossegar a
dor de uma asa partida. É bem mais difícil fazer isto do que deitar tudo abaixo
e construir de novo. A suspensão do desastre envolve um exercício de coragem,
no olhar que segue inquisitivo, a medo, à procura de um reconhecimento do eu
nas coisas antigas. Escreve a Rute: “talvez sentir melhor seja um pouco mais de
coragem, / verificar por baixo as secreções do que ainda deita, sinal de que
mexe, / mesmo azedo, quase passado.” [p. 50] Plantar coisas num terreno minado
é possível, claro, e o factor de regeneração da natureza, de costas voltadas
para o homem, está presente neste livro. Leia-se assim os versos: “e a terra
redescobre, talvez, todos os dias o que se quer encontrar/e diz-nos como não
ouvimos.” [p. 43] A memória cicatriza, isto é também trivial. O que já não é
trivial é a diferença operada na mente de quem interiorizou um certo grau de
violência e usou essa violência para voltar a estranhar o mundo. Digo
“estranhar” num sentido absolutamente positivo e saudável, como a personagem Miranda,
em The Tempest, de Shakespeare,
estranha o mundo de olhos a brilhar, ao ver o seu “admirável mundo novo”. Sobretudo
porque é novo para si. O que a Rute
consegue através da força de muitos dos seus versos é uma regeneração da sua
paisagem interior, e o soro dessa beleza reclamada é encontrado num exercício
de respiração boca a boca com a morte. Ou pelo menos com as várias perspectivas
sobre a morte. Um encontro muito sério da voz da Rute consigo mesma: é isso que
me atrai mais neste livro. E é isso que me parece jogar a seu favor, porque lhe
transforma a percepção do mundo. E a nós, aos leitores, dá-nos que fazer com a
espécie de candura em suspensão contínua dos seus versos. O que é feio é para
se ver, ou melhor, reconhecer. E este tipo de reconhecimento, que envolve uma participação
na forma como o mundo se nos apresenta, em vez de uma mera contemplação, exige
também responsabilidade, e com ela um certo grau de decoro. Diz a Rute, ao
fechar o livro: “tens a serpente no colo e acarinhas o veneno, / as feridas
secam e os rostos também / e é feio apontar.” [p. 51]
É, ou pelo menos para mim sempre foi,
extremamente irritante quando dizem: “levas-te demasiado a sério”. O que me apetece
responder é: “mas como é que é possível não me levar demasiado a sério?” E onde
é que há espaço para a palavra “demasiado” neste contexto? A poesia é uma
conversa de surdos, ou de malucos, é à escolha do freguês. O leitor entra nesta
conversa a meio. Ou fica a ouvir, de costas, de preferência, como se faz nos
cafés, ou vai-se embora, entretido com os seus passinhos. Eu levo-me a sério,
não demasiado porque o demasiado não tem aqui lugar, e acho que a Rute também se
leva a sério. E só com esta atitude responsável perante a escrita é que se pode
dizer: eu escrevo. Não é a poesia-laracha que me interessa. Não é a poesia com a
sebenta da faculdade ao lado que me interessa. Muito menos a poesia de
cuspidores de fogo do Chiado ou a poesia de versinho a condizer. Cada pessoa tem
um embate sério, seríssimo, prometido consigo mesma. Do rebentar desse embate,
dessas feridas, vem o sangue, e também há flores, mas no final, estendidos
nessa espécie de ringue ontológico, não podemos ter só o sangue ou só as flores
à nossa volta. Coragem, coragem e mais coragem. É o que se exige. E que todos
os que escrevem se levem estupidamente a sério. Que não se invente quando não
se encontra o pulso, todos temos as nossas pequenas mortes; que não se
vampirizem mortos quando andamos de nariz entupido e não cheiramos o nosso
próprio sangue. Ele há de cheirar. E o trabalho da Rute é lento, paciente, e
chegou, e não vampiriza, não repete, até porque não se pode repetir a
respiração particular de uma vida.