Rute Castro: O Sangue das Flores
por Frederico Pedreira, em 31 de Outubro de 2014
(texto lido na apresentação do livro)

A capa deste livro é alegórica:
metade mulher, metade voo. Quem diz voo diz sonho, e um sonho só se constrói
sobre um pano-de-fundo real. Isto é trivial. O que importa no livro da Rute é uma
vontade, uma vontade de contornos muito delicados e ponderados, de reabilitar o
mundo através da beleza possível que sobrevive nas coisas, nos lugares e seus
habitantes. Quando falo em lugares, falo sobretudo nos lugares da memória. É
sabido: a poesia é um corpo vivo que reinventa a sua própria memória. E então é
aqui que a voz da Rute entra com uma frescura diferente: O Sangue das Flores apresenta-se-me como a ventilação do desastre. Aqui
faço uma pequeníssima e talvez escusada ilustração: “[…] aqui estamos neste
desabar/de pele, neste romper alegorias, nos ternos incêndios da manhã, // é
meia-noite, talvez hoje anjos recaiam sobre a minha praga, esta mão/que ainda
balouça o fim do mundo.[p.29]” Quando li este livro, lembrei-me imediatamente
de um exercício. Imagine-se entrarmos numa casa abandonada, de madeiras podres
e nuvens de pó, e, sem tocar em nada do que é memória nessa casa, pormo-nos a
decorá-la com flores, sedas, coisas de uma delicadeza superlativa. Não se mexe
na disposição das coisas, no rumo selvagem da memória. É proibido. Não podemos
sequer enxotá-la. Quando li O Sangue das
Flores percebi que a Rute trabalhou sobre este tipo de reconhecimento das
coisas, e apercebi-me de que ela trata dos escombros como se tenta sossegar a
dor de uma asa partida. É bem mais difícil fazer isto do que deitar tudo abaixo
e construir de novo. A suspensão do desastre envolve um exercício de coragem,
no olhar que segue inquisitivo, a medo, à procura de um reconhecimento do eu
nas coisas antigas. Escreve a Rute: “talvez sentir melhor seja um pouco mais de
coragem, / verificar por baixo as secreções do que ainda deita, sinal de que
mexe, / mesmo azedo, quase passado.” [p. 50] Plantar coisas num terreno minado
é possível, claro, e o factor de regeneração da natureza, de costas voltadas
para o homem, está presente neste livro. Leia-se assim os versos: “e a terra
redescobre, talvez, todos os dias o que se quer encontrar/e diz-nos como não
ouvimos.” [p. 43] A memória cicatriza, isto é também trivial. O que já não é
trivial é a diferença operada na mente de quem interiorizou um certo grau de
violência e usou essa violência para voltar a estranhar o mundo. Digo
“estranhar” num sentido absolutamente positivo e saudável, como a personagem Miranda,
em The Tempest, de Shakespeare,
estranha o mundo de olhos a brilhar, ao ver o seu “admirável mundo novo”. Sobretudo
porque é novo para si. O que a Rute
consegue através da força de muitos dos seus versos é uma regeneração da sua
paisagem interior, e o soro dessa beleza reclamada é encontrado num exercício
de respiração boca a boca com a morte. Ou pelo menos com as várias perspectivas
sobre a morte. Um encontro muito sério da voz da Rute consigo mesma: é isso que
me atrai mais neste livro. E é isso que me parece jogar a seu favor, porque lhe
transforma a percepção do mundo. E a nós, aos leitores, dá-nos que fazer com a
espécie de candura em suspensão contínua dos seus versos. O que é feio é para
se ver, ou melhor, reconhecer. E este tipo de reconhecimento, que envolve uma participação
na forma como o mundo se nos apresenta, em vez de uma mera contemplação, exige
também responsabilidade, e com ela um certo grau de decoro. Diz a Rute, ao
fechar o livro: “tens a serpente no colo e acarinhas o veneno, / as feridas
secam e os rostos também / e é feio apontar.” [p. 51]
É, ou pelo menos para mim sempre foi,
extremamente irritante quando dizem: “levas-te demasiado a sério”. O que me apetece
responder é: “mas como é que é possível não me levar demasiado a sério?” E onde
é que há espaço para a palavra “demasiado” neste contexto? A poesia é uma
conversa de surdos, ou de malucos, é à escolha do freguês. O leitor entra nesta
conversa a meio. Ou fica a ouvir, de costas, de preferência, como se faz nos
cafés, ou vai-se embora, entretido com os seus passinhos. Eu levo-me a sério,
não demasiado porque o demasiado não tem aqui lugar, e acho que a Rute também se
leva a sério. E só com esta atitude responsável perante a escrita é que se pode
dizer: eu escrevo. Não é a poesia-laracha que me interessa. Não é a poesia com a
sebenta da faculdade ao lado que me interessa. Muito menos a poesia de
cuspidores de fogo do Chiado ou a poesia de versinho a condizer. Cada pessoa tem
um embate sério, seríssimo, prometido consigo mesma. Do rebentar desse embate,
dessas feridas, vem o sangue, e também há flores, mas no final, estendidos
nessa espécie de ringue ontológico, não podemos ter só o sangue ou só as flores
à nossa volta. Coragem, coragem e mais coragem. É o que se exige. E que todos
os que escrevem se levem estupidamente a sério. Que não se invente quando não
se encontra o pulso, todos temos as nossas pequenas mortes; que não se
vampirizem mortos quando andamos de nariz entupido e não cheiramos o nosso
próprio sangue. Ele há de cheirar. E o trabalho da Rute é lento, paciente, e
chegou, e não vampiriza, não repete, até porque não se pode repetir a
respiração particular de uma vida.